Vila do Bananal - São Paulo (Brasil) - ano 1835.
Dezembro chegou chuvoso, mais até que nos últimos anos…..
No casarão, cercado por um lindo jardim e imponentes palmeiras, uma bela menina, de apenas doze anos, brinca com sua boneca de porcelana, trazida da Inglaterra por seu pai , o Barão Lenzone Soares, importante produtor de café.
Rutinha, como era carinhosamente chamada por sua mãe, a senhora Eufrásia Soares, desde seus cinco anos, desenvolveu grandes habilidades para a leitura. Extremamente inteligente e caridosa, atraia em todos os escravos da fazenda uma grande admiração.
Acredita-se que a bondade era característica nata daquela família.
Tradicionalmente, todos os anos, a família Soares proporcionava aos seus familiares, amigos e escravos uma deliciosa e animada noite de natal.
A grande e famosa fazenda era lindamente decorada para a festa do nascimento do menino Jesus.
Dona Eufrásia e suas mucamas enfeitavam as janelas e portas da casa grande e preparavam uma deliciosa e farta ceia de natal.
Rutinha, alegre como sempre, ajudava sua mãe fazendo lindos e grandes laços vermelhos e colocando-os em volta da grande mesa e nos umbrais das portas.
Abolicionista convicto, o Barão Lenzone e família mantinham um estreito e bonito laço de amizade e respeito com todos os serviçais de sua fazenda, contrapondo ao comportamento hostil e humilhante que os escravos das fazendas vizinhas eram submetidos.
Foi neste ambiente acolhedor e feliz que Rutinha, filha única de um afortunado casal paulista, nasceu e cresceu.
Entretanto, um dia… tudo mudou!…...
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20 de abril de 1840.
O calor toma conta de toda a Vila…..
Na casa grande, um vai e vem da mucamas anuncia os preparativos para mais uma viagem de seus senhores à Espanha.
De dois em dois anos, o Barão Lenzone e sua esposa partiam em viagem ao exterior para implementarem os negócios da fazenda Soares, que se destacava como grande produtora de café do país.
Rutinha, agora com seus 17 anos, tornou-se uma bela moça, educada e prendada. Cobiçada pelos moços de sua região, com a permissão de seu amado pai, ela protelava a decisão de enamorar-se e casar-se. Achava-se muito nova para tal feito. Optou em compartilhar da companhia de seus pais por mais alguns anos. Definitivamente, ao contrário das outras moças de seu tempo, Rutinha não tinha pressa em assumir compromisso como esposa e mãe de família.
Mimada por todos e cercada de muito amor, a doce adolescente dedicava os seus dias a ler bons livros e cultivar belas flores no jardim, com o auxílio do senhor José, o velho jardineiro da fazenda.
Logo após o almoço, Rutinha se despede de seu pai e sua mãe e de longe os vê partirem na carruagem da fazenda em direção à cidade de Santos, de onde embarcariam em um navio para a Europa.
A rotineira calma transcorria na fazenda até que, de repente, um mensageiro entra correndo no grande salão onde Rutinha e Marta, sua mucama, tricotavam lindos panos de prato.
Rutinha, assustada, questiona:
- O que houve João ? Qual o motivo de tanta afobação?
Engasgado, o rapaz responde:
- Não tenho boas notícias para a senhorita! Infelizmente, o navio que levava o Barão Lenzone e Dona Eufrásia sofreu um naufrágio…… Todos os passageiros e tripulantes morreram afogados!!!!
O choque da notícia emudeceu a bela moça…..
Por alguns instantes, Rutinha mantêm-se calada e em estado de choque!
- Não pode ser!…… Meus queridos pais?….. Não!…...Não pode ser!!!! - Gritou Rutinha.
Tentando acalmá-la, Marta a abraça forte, procurando conter suas lágrimas…..
A partir deste dia, tudo mudaria para todos !!!…….
A rotina amigável e feliz da fazenda jamais seria a mesma!!!
Devido à falta de experiência de Rutinha com os negócios da fazenda e por não ter um irmão ou marido que a auxiliasse, em pouco tempo, toda a Fazenda Soares e seus escravos tiveram que ser vendidos para honrar compromissos financeiros assumidos pelo Barão. Ele jamais imaginaria que os seus planos de crescimento econômico também morreriam com o seu falecimento.
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Dia 13 de novembro de 1843.
Após o falecimento de seus pais e venda da fazenda, Rutinha se viu obrigada a trabalhar para se manter, fazendo o que ela mais gostava : alfabetizar e compartilhar leituras com as crianças das fazendas da Vila do Bananal.
Com o tempo, ela se tornou uma respeitável professora.
Aos seus 20 anos de idade, Rutinha reside em uma pequena casa, nos fundos da fazenda do senhor Pereira, um temido escravocrata, agora seu patrão.
Totalmente diferente do que ela costumava ver na fazenda de seus pais, na fazenda Pereira os escravos eram tratados com escárnio e de forma totalmente desumana!!!!
Duros castigos e terríveis penas eram imputados a todos os serviçais daquela fazenda.
Negros fugitivos eram colocados no poço onde recebia os detritos da casa grande, para morrerem afogados nas fezes de seus donos.
No tronco, colocado estrategicamente no centro da fazenda, marcas recentes de sangue demonstravam o tratamento dado aos que não obedeciam.
Crianças negras eram levadas diariamente à casa de seus donos para fazerem a limpeza nos aposentos e latrinas.
Após as refeições de seus senhores, restos de alimentos eram jogados em uma gamela de barro onde todos os escravos se alimentavam ferozmente, levando várias vezes à boca a mão cheia de comida.
Próximo ao celeiro, jovens e fortes negros tostavam-se debaixo do sol escaldante, totalmente imóveis, enquanto telhas de barro secavam em suas coxas.
Nas noites frias, mulheres e crianças eram colocados em um porão, exatamente debaixo da sala de jantar da casa grande, com o objetivo de aquecer o chão enquanto seus donos degustavam seus deliciosos assados.
Quase todas as tardes, belas e jovens mucamas eram levadas, por seus senhores e filhos de seus senhores, à grande senzala e ali eram estupidamente violentadas.
Fortes negros trabalhavam incansavelmente na enorme plantação de café.
Todas estas horríveis cenas deixavam Rutinha extremamente triste!
Infelizmente, por ser uma simples professora da fazenda, ela não poderia fazer nada para mudar a situação daqueles sofridos escravos e escravas.
À noite, antes de dormir, Rutinha se ajoelhava ao lado de sua simples cama e orava a Deus pedindo misericórdia por aquelas vidas!
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Dia 24 de dezembro de 1843.
Véspera de natal!
Na cozinha as escravas cozinheiras preparam a ceia de seus donos ,sob o olhar atento e exigente da temida senhora Margarida, esposa do senhor Pereira.
No pátio da fazenda, escravos correm para receberem e guardarem as luxuosas carruagens de ilustres convidados, que não param de chegar….
Rutinha, sentada em um pequeno banco do jardim, observa o movimento e recorda dos animados Natais que passou em sua fazenda, com seus pais, amigos e alguns serviçais (considerados como da família). Que saudades!!!!…… Como tudo mudou!!!!
Pensativa, ela recorda da linda oração feita por seus pais, antes da ceia natalina e dos momentos em que, sentada na cadeira de balanço, sua doce mãe lhe ensinava o verdadeiro significado do natal : Nascimento de nosso Senhor Jesus. Tudo era tão lindo e repleto de amor!…..
Desanimada, Rutinha recolhe-se cedo, optando em passar a noite de Natal sozinha, em seu humilde quarto.
Quando o dia estava quase amanhecendo, um ensurdecedor grito ecoou por toda a fazenda. Vinha da senzala…… Uma escrava, em trabalho de parto, esforçava-se com sofrimento para dar à luz!
Extremamente irritada, a senhora Margarida mandou chamar dois capatazes e ordenou que eles matassem a mãe e filho, assim que este nascesse, e os enterrassem debaixo do chão da cozinha, para que servisse de exemplo para as demais escravas, afinal, a malvada mulher não suportava ter o seu sono interrompido!
Vendo aquela cena horrível, Rutinha se revoltou! Lembrou-se do que sua mãe sempre lhe falava :” Natal é a essência do amor ao próximo, pois é quando comemoramos o nascimento Daquele que tanto nos ama!”
Aquela foi “a gota d'água” que faltava para ela tomar a decisão mais importante de sua vida!
A partir daquele dia, a bela e frágil moça se tornaria uma das mulheres mais fortes e visionárias do Brasil.
Com o auxílio de dois fortes negros, Rutinha, dez escravas e cinco escravos fugiram correndo, sem serem percebidos.
Juntos, trilharam morros, rios, mata fechada, passaram por frio, fome e dores (nos pés e nas costas). Andaram e correram léguas… durante dias….. até acharem um lugar seguro, onde montaram pequenos abrigos feitos de folhas e barro . Deram a este lugar o nome de “Quilombo Rutinha”.
Durante o dia os homens pescavam e caçavam enquanto as mulheres cuidavam do preparo dos alimentos e da limpeza.
Por muitos anos, Rutinha e seus escravos e escravas foragidos viveram escondidos, contudo, em paz!
Logo os ensinamentos bíblicos tornaram-se parte integrante da educação daquelas pessoas. Rutinha os ensinava a palavra de Jesus e via, de perto, a grande transformação nos corações sofridos daqueles negros e negras.
Os Natais seguintes foram comemorados com simplicidade, porém com muita paz e união, afinal, amor ao próximo é uma das mais belas e concretas provas de amor, ensinada e vivida por nosso mestre: Jesus!
Anos depois, em 13 de maio de 1888, após quatrocentos anos de escravidão no Brasil, a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, decretando a abolição da escravatura!
Aos seus 65 anos, Rutinha pode presenciar seus grandes amigos escravos, por fim, comemorarem a liberdade!
Neste mesmo ano o Jornal Estado de São Paulo, comemorando o grande acontecimento, entrevistou Rutinha que simplificou a sua jornada de vida em uma só frase:
“ O natal está em mim, em você, em todos nós. Por isso, ame ao seu próximo como a você mesmo e faça do Natal um renascimento!”
Muitos anos depois de seu falecimento, Rutinha ainda é lembrada e amada, em todas as noites de natal, por sua coragem, força e determinação!
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